Sete Lágrimas and Winnie Dias @ CCB Centro Cultural de belém (© Denys Stetsenko)

Sete Lágrimas and Winnie Dias @ CCB Centro Cultural de belém (© Denys Stetsenko)

voo.

O voo das lágrimas. Se decantarmos uma lágrima, nela encontraremos, em Ph neutro de 7.0 a 7.4, o elementar: água, proteínas, gordura, sais minerais. No sistema imunológico compreenderemos a exacta função do fluído lacrimal. Na razão científica descobriremos que a secreção das lágrimas resulta de um quadro sinóptico objectivo, sendo estas acompanhadas de vasodilatação periférica, uma alteração significativa da pressão sanguínea e a aceleração dos batimentos cardíacos. Lachrimae. Se as lágrimas fossem tão só isso, seriam já mecanismos perfeitos, de tecnologia vanguardista, maravilhosamente obsoleta, rasgando faces humanas desde a ancestralidade, em suaves puídos, às vezes cascata, às vezes torrente, às vezes uma simples unidade de dor, noutras um fio de alegria, noutras, mera fisiologia, sem deixar no visível um rasto que não se apague, uma única cicatriz. 

Não há como extrair de uma lágrima coisas de tal modo abstractas como o desgosto, a tristeza, a energia da felicidade ou a sua força retroactiva, a doçura, o fel, a beleza, a memória, a raiva, a compaixão, a contrição, a despedida, o exílio, a saudade, o medo, o abandono, a identidade, a conjugação de uma paisagem num estado psicossomático num momento exacto de um tempo inexacto, a espiritualidade, a imaterialidade e todos os ínfimos pedaços de uma imensa melancolia que, juntamente com outras substâncias sem alquimia, sendo intangíveis, estão longe de ser. É um complexo de enigmas, a lágrima. Um ensamble metafísico são as lágrimas, que nos transportam e nos resgatam em mundos sem espaço e sem tempo, em osmoses de feitiçaria.

Não é possível conter uma lágrima, assim como não é possível capturá-la. É uma espécie de alforria plena, em estado puro de divindade. Liberdade absoluta. Não é possível compreender uma harmonia assim, sem entender primeiro que da sua natureza cósmica, de ser viajante, resulta uma linguagem específica, multidimensional, mais velha que os deuses, muito mais velha que os altares. Há na linguagem das lágrimas uma universalidade etnográfica, que alcança o que não conseguem as palavras, apenas o sentir. 

De uma lágrima não se sintetiza o silêncio, nem as infinitas declinações da sua interrupção. De uma lágrima se extraem apenas premissas póstumas, sob uma precária sensação de fim. De nós, a lágrima é talvez o único emissário capaz de voar em céus que não existem, sem qualquer desprimor pela alma, Deus a conserve na sua parábola criogénica. À lágrima perdida não se regressa se não por outras lágrimas, mesmo que brotem, inadvertidas, no soslaio do ser, mesmo que se encontrem num desses dias semiópticos, na elegia neurótica de um dia normal.

Das lágrimas não se espera filiação, cromossomas, herança genética, cânones. Das lágrimas espera-se tudo e espera-se nada. Quando as choramos, esperamos eventualmente que se esvaiam, pois muitas vezes são inoportunas, mesmo quando são admoestadas, sendo raras as lágrimas desejadas. Há nas lágrimas um paradoxo assombroso, que brinca constantemente às escondidas com o mito sistémico da imortalidade. Há nas lágrimas poesia antropológica, diálogos incessantes, vazio, língua, melodia. São os mais óbvios dos mais secretos vasos comunicantes, utilizando a arcaica linguagem do tempo. As lágrimas são isso, esse diálogo, a linha de identidade, transversal, que se fecha como um ciclo e se abre à sua contemporaneidade. É preciso ser lágrima para viajar nesse terroir. Ser elemento mágico, transportar essa linguagem para algo de novo, fazendo o que as lágrimas e os amantes fazem, voando, como se estivessem num perpétuo en tus brazos una noche. É como se o tempo parasse a uma velocidade astronómica, colidindo em perfeita harmonia. É como se não houvesse tempo, que é o melhor entendimento que alguém lhe pode dar. Poder viajar como viajam as lágrimas é simplesmente maravilhoso. Talvez só as lágrimas, na sua amplitude universalista, o saibam descrever plenamente pelo tradicional método da cantiga. 

Não residem as lágrimas só nos olhos, que vêem os objectos, mas nos mesmos objectos que são vistos; ali está a fonte, aqui está o rio; ali nascem as lágrimas, aqui correm. Lágrimas de Heráclito, padre António Vieira

Seja como for, há mais lágrimas do que homens, mais lágrimas do que humanidade. São dogma e contra-dogma, ciclo e contra-ciclo, transpositoras magníficas, indómitas e frágeis, as lágrimas de gente. Quantas lágrimas nascem quando alguém nasce, não se sabe exactamente, não havendo também dados fidedignos sobre aquelas lágrimas peregrinas que se escapam das glândulas de um confessionário de extrema-unção, missa mínima, escorrendo sobre a matéria acabada que somos após um último suspiro. É como se fosse um organismo dissidente, sal da terra, que na evidência desaparece. Há nas lágrimas uma abnegação e um sentido de dever, e entre elas uma espécie de diáspora. É provavelmente o mais cognitivo dos truques de magia, cripto-
-trágico, como o destino. Há nas lágrimas um eterno humanismo renascentista e na sua melancolia uma visão que descentra do homem, para nele recentrar. Há nas lágrimas um brilho intenso, ofuscado por uma imensa negritude, que aproxima mais do que separa. A morte. O luto. O fim. O mais erudito dos arquétipos. 

Na sua morfologia de península fugidia, as lágrimas são da essência humana um espelho convexo. Obedecem a uma lógica que obedece a lógica nenhuma, que une enquanto rompe e desconstruindo reconstrói. Utilizam os instrumentos da viagem, a sua natureza transfronteiriça, descobrindo novos mundos, novos dialectos da expressão.

São as lágrimas sujeito absoluto e intemporal da ordem do homem e das civilizações, um estado de consciência estranhamente simples, simplesmente elaborado, um complexo atmosférico entre-tempos. Voar com as lágrimas é como ter acesso aos poderes de Ícaro. 

Aquilo que nos permite não estar, estando, aquilo que nos permite ficar, partindo, mesmo quando se voa na dinâmica do sossego, voando sem impossibilidade. A materialidade das lágrimas, a sua inesgotável força háptica, reside na longa relação que tem com o tempo, como se vivesse todas as vidas e morresse todas as mortes e a ambas sobrevivesse. A criatividade é a linguagem das lágrimas, a melancolia a sua fórmula desencriptante. É um processo tão simples, tão divino, voar com as lágrimas. 

Cada lágrima decantada é como um ciclo que termina e principia. Lágrimas são mundos reinterpretados, a emergir da sua constante interpretação. Lágrimas são sempre lágrimas, sempre em utopia, sempre émulas de si, sempre numa estranha forma de morte, sempre numa estranha forma de paz. Talvez as lágrimas sejam todas as partículas da terra, átomos de biologia perdida, perdidos no seu próprio labirinto, condenados, como vento, a viajar por todos os céus, em todas as paisagens, em todos os territórios do ser. 

Há no irreal algo que só as lágrimas atingem e na realidade algo inatingível, que só pode ter a ver com a irrealidade das coisas, que é a realidade das lágrimas. Há em todas as coisas um silêncio inconcebível e, nisso, musicalidade. Está certo que em tempos a música não passava das palavras um mero acessório. Mas isso é o mesmo que entender mal as lágrimas e, tristemente, as palavras. Há em nós uma kleine musik que nos percorre a espinha, algo parecido com o pensamento, só que às vezes mais fundo, tão estável, tão débil quanto este. Há algo em nós tão imperceptível quanto a irrealidade, tão distópico quanto a mundividência de uma lágrima. Há em nós uma eterna viagem por fazer, tão certa quanto uma lágrima por verter e, nessa mesma razão, incerta. 

Há nas lágrimas uma estética mental, multipolar, em crónica mutação. É o mais complexo, o mais belo, e o mais prodigioso sistema de comunicação. Como se a vida, a cada lágrima, fizesse a derradeira demonstração divina da sua imortalidade. Como se nos dissesse que o paraíso é aqui e o inferno também. Se algum Deus existe, existe na melodia. Lá, onde voam as lágrimas, sob céus imaginários. A lágrima é um sonho perdido e encontrado, em estado frágil e invicto de razão, que começa no fim e acaba jamais. O céu é uma pedra irregular em sete palmos de terra. A humanidade não quer saber disso. Mas não há lágrima que o não saiba. 

Luís Pedro Cabral 


flight.

The flight of tears. If we decant a tear, we find a number of basic elements with a neutral Ph between 7.0 and 7.4: water, proteins, fats, mineral salts. In the immunological system, we understand the exact function of tear fluid. In scientific reasoning, we discover that the secretion of tears is the result of an objective synoptic framework and that it is accompanied by peripheral vasodilation, a significant change in blood pressure and an accelerated heart rate. Lachrimae. Even if tears were nothing more than this, they would already be perfect mechanisms based on wonderfully obsolete, cutting-edge technology, rending human faces until they are softly worn since time immemorial, falling at times in a cascade, at others in torrents, at others as single units of pain, at others as threads of happiness, at others as mere physiology, leaving no visible, indelible trace or scar. 

There is no way to extract such abstract things from a tear as grief, sorrow, zestful joy or its retroactive strength, tenderness, bile, beauty, memory, rage, compassion, contrition, farewells, exile, nostalgia, fear, abandonment, identity, the conjugation of a landscape in a psychosomatic state at an exact moment in an inexact time, spirituality, immateriality and every tiny piece of an immense melancholy that, along with other substances without alchemy, are simultaneously intangible and far from intangible. Tears are a complex of enigmas. Tears are a metaphysical ensemble that transports us and saves us in worlds without space or time, in sorcerous osmoses.

It is impossible to contain a tear, just as it is impossible to capture it. Tears are akin to full emancipation in a pure state of divinity. Absolute freedom. It is impossible to comprehend such harmony without prior understanding that their cosmic nature as travellers gives rise to a specific, multidimensional language that is older even than the gods, far older than shrines. The language of tears contains an ethnographic universality that touches what words cannot and only feelings can. 

Silence [silêncio] cannot be distilled from a tear, nor can the infinite declensions of its interruption. Only posthumous assumptions may be extracted from tears, a perilous sense of finality hanging over them. Tears are perhaps our only emissary that is able to fly in non-existent heavens, no insult to the soul intended – may God preserve it in His cryogenic parable. Lost tears can only be recovered through more tears, even if they spout inadvertently from the obliquity of the being, even if they can be found on one of those semi-optic days in a neurotic elegy to a normal day [um dia normal].

Tears are not expected to contain filiation, chromosomes, genetic heritage or canons. We expect everything and nothing from tears. When we cry, we hope that they will eventually drain away, as they are often inconvenient, even when rebuked, as desired tears are rare. Tears contain an astonishing paradox, playing constant games of hide-
-and-seek with the systemic myth of immortality. Tears contain anthropological poetry, incessant dialogue, emptiness, language, melody. They are the most obvious of the most secret communicating vessels, using the archaic language of time. That is what tears are: this dialogue, a cross-cutting line of identity, closing like a cycle and opening up to its contemporaneity. You need to be a tear to travel this land. A magical element, transporting that language towards something new, doing what both tears and lovers do, flying, as if in a perpetual night-time embrace [en tus brazos una noche]. It is as if time had stopped at astronomic speed, colliding in perfect harmony. It is as if there was no time, which is the best understanding that anyone can offer. Being able to travel like a tear is simply marvellous. Perhaps tears alone, in their universalist breadth, are able to fully describe the experience through the traditional method of song [cantiga]

Tears do not reside only in the eyes that see objects, but in the very objects that they see; there is the fountain, here is the river; there the tears are born, here they flow. The Tears of Heraclitus, Father António Vieira

In any case, there are more tears than there are men, more tears than there are humans. People’s tears are both dogma and counter-dogma, cycle and counter-cycle, magnificent, untamed and fragile transposers. Nobody knows exactly how many tears are born when a person is born; there are no reliable data on those pilgrim tears that escape the glands of a last rites confessional, minimal mass [missa mínima], flowing over the ravaged matter that we are reduced to after drawing our last breath. It is as if they were a dissident organism, salt of the earth [terra], disappearing on evidence. Within tears, there is self-denial and a sense of duty, a kind of diaspora [diáspora] emerging between them. This is probably the most cognitive of magic tricks, crypto-tragic, like fate. Within tears, there is an eternal Renaissance humanism; in their melancholy lies a vision that decentres man in order to refocus on him. Within tears, there is an intense glow, dimmed by a formidable blackness that brings things closer rather than separating them. Death. Grief. The end. The most erudite of archetypes. 

In their fleetingly peninsular [península] morphology, tears are a convex mirror of the human essence. They obey a logic that obeys no logic, that joins as it breaks and reconstructs as it deconstructs. They use the tools of travel, its cross-border nature, discovering new worlds, new dialects for expression. Tears are the absolute, timeless subject of the order of humankind and of civilisations, a strangely simple state of consciousness, simply formulated, an atmospheric complex between times. Flying with tears is like gaining access to Icarus’ powers. It allows us not to be while also being, to remain while also leaving, even when we are flying in peaceful conditions, flying without impossibility. The materiality of tears, their inexhaustible haptic strength, lies in their lengthy relationship with time, as if they had lived all lives, died all deaths and survived both. Creativity is the language of tears, while melancholy is their decrypting formula. Flying with tears is such a simple, divine process. 

Every tear decanted is like a cycle that ends and begins. Tears are reinterpreted worlds, emerging from their constant interpretation. Tears are always tears, always utopian, always emulous of themselves, always experiencing a strange kind of death, a strange kind of peace. Perhaps tears contain all the particles of the earth, atoms of lost biology, lost in their own labyrinth, condemned, like the wind [vento], to travel all the skies, across landscapes, in all regions of the being. 

Within the unreal, there is something that only tears can reach and something that is truly unreachable that can only be explained by the unreality of things, which is the reality of tears. Within all things, there is an unimaginable silence, and within that, musicality. It’s true that music was once little more than a mere accessory to words. But that is to misunderstand tears, and, sadly, words. Within us, there is a kleine musik that runs up and down our spine, rather like thoughts, but often deeper than the latter, equally stable, equally weak. Within us, there is something as imperceptible as unreality, as dystopian as a tear’s world view. Within us, there is an eternal journey to be made, as certain as a tear to be shed, and, for that same reason, uncertain. 

Within tears, there is a mental, multipolar aesthetic undergoing chronic change. It is the most complex, the most beautiful, the most prodigious of communication systems. As if life, with each tear, were giving the ultimate divine demonstration of its immortality. As if it were telling us that both heaven and hell are right here. If a God exists, He exists in melody. Up there, where the tears fly, beneath imaginary heavens. Tears are a dream lost and found, in a fragile and undefeated state of reason that begins at the end and is never-ending. The sky is a jagged rock [pedra irregular] on seven feet of earth. Humankind doesn’t want to know. But there isn’t a single tear that doesn’t. 

Luís Pedro Cabral